
Os anos 1970 foram
muito benéficos para Carlos Hugo Christensen. Bem estabelecido no Rio
de Janeiro, o cineasta argentino pode expandir seu repertório de
histórias para além da comédia e do drama, gêneros aos quais,
principalmente, se reportava em sua carreira brasileira. Sempre com
bastante notabilidade, passou pelo horror, pelo faroeste, pelo suspense,
pelo policial e até pela comédia maliciosa. Em A Intrusa, seu filme
derradeiro no Brasil e talvez o mais lembrado,
Christensen apostou no drama de época, a partir do conto La Intrusa, do
também argentino Jorge Luis Borges.
Premiado em Gramado, em 1980, como melhor diretor, ator (José de Abreu) e
fotografia (Antônio Gonçalves), A Intrusa mostra também que mesmo
fugido de sua terra natal e radicado num lugar que amava, a Argentina
nunca saiu de Christensen. Além de Borges e do
portunhol falado em vários momentos do filme, o longa traz também a
trilha musical original de Astor Piazzolla, com seus belíssimos tangos.
Talvez tenha sido isso que o impulsionou a voltar ao país de origem para
realizar ¿Somos? (1982).
Situado em Uruguaiana, na fronteira entre Brasil e Argentina, em 1897,
nos pampas gaúchos, A Intrusa acompanha os irmãos Nilsen, Cristiano
(José de Abreu) e Eduardo (Arlindo Barreto), muito unidos e temidos na
região. Entre a prestação de serviços com gado
e couro e as apostas com galos de briga e corridas de cavalos, os
Nilsen tocam a vida no vilarejo entre o prostíbulo, o bar e a casa,
abusando da fama que mantêm. Tudo vai muito bem até Cristiano levar para
casa Juliana (Maria Zilda), uma espécie de escrava
do lar, que deve realizar os serviços domésticos e satisfazê-lo na
cama.
Juliana, a intrusa do título, é o ponto de transformação da história. A
relação dela com Cristiano causa enorme ciúme em Eduardo, que teme
perder seu irmão, ao mesmo tempo que emula um desejo pela moça.
Christensen, com sua habitual presteza e habilidade cênica,
parece pouco interessado em Juliana como femme fatale, aquela que
destrói lares. O que importa em A Intrusa é o retrato de uma sociedade
machista e misógina, baseada praticamente na figura do homem como ser
superior. As mulheres de Uruguaiana são prostitutas
ou servas, mal cabendo ali o papel de esposa ou filha.
Dentro dessa lógica da exaltação da figura do homem, como ser bravo e
leal, a admiração só existe de um homem para outro, já que a mulher, sem
voz, é vista como objeto. Juliana funciona como catalisador da relação
entre Cristiano e Eduardo. A começar por ela
ser uma estranha dentro da casa, espaço tido como sagrado para os
irmãos, onde ninguém, além deles, deve adentrar, e onde eles se revelam.
O fato de ela estar na casa evidencia o ciúme em Eduardo, por julgar
perder seu parceiro. Numa atitude infantil, o rapaz
resolve dar o troco. Primeiro, busca provocar ciúme e chamar a atenção
de seu irmão –entrando em apostas que sabe que perderá, trazendo outra
mulher para casa–, sem o efeito esperado. Depois, toma Juliana em seus
braços como forma de entender e de ter o irmão.
Juliana é o duplo na relação. Uma vez que Cristiano descobre o
envolvimento de ambos e percebe o desarranjo que a mulher causa na vida
deles, os irmãos decidem vendê-la para o prostíbulo. Isso a torna apenas
mais atraente e passam a mentir um para o outro
apenas para tê-la.
Com a volta de Juliana à casa, o relacionamento dos dois enfim se
estreita. A cumplicidade entre ambos que se revela um amor latente é
enfim consumada, no que talvez seja a mais bela cena do filme. Juntos
decidem possuir Juliana, que deixa de ser um duplo e
passa a ser apenas uma engrenagem facilitadora. Ela, ali, permite, numa
sociedade machista, que dois homens, irmãos, dividam a cama, numa noite
de luxúria e prazer. De maneira sutil e elegante, como era de seu
feitio, Christensen, que quase sempre mostra em
seus filmes sugestões de homoafetividade, apresenta a latente relação
incestuosa e homossexual entre Cristiano e Eduardo, que parecem, enfim,
perceber e dimensionar o afeto entre eles.