O surgimento da Mulher Maravilha nos quadrinhos é uma mistura de contexto social e vida pessoal. Seu criador, William Moulton Marston, era um entusiasta sincero do movimento feminista, nas primeiras décadas do século 20, nos EUA. Mas também era alguém polêmico e contraditório. E a figura de sua heroína, corpo e mente, foi inspirada em três importantes mulheres de sua vida. O livro de Jill Lepore mostra que a Mulher Maravilha é fruto direto da longa e difícil luta de uma era marcante do feminismo.
Marston nasceu em 1893. Atlético, carismático e multitalentoso, desde garoto, muita gente e, mais do que ninguém, o próprio Marston acreditavam que ele estava destinado a realizar grandes feitos. Aluno de destaque em Harvard, foi líder em várias atividades universitárias. Escritor prodígio de roteiros de cinema, venceu um importante concurso da época. O filme Jack Kennard, Coward foi produzido em 1915, mas teve uma exibição limitada. Anos depois, Marston se tornou consultor do estúdio Universal durante a transição do cinema mudo para o sonoro.

Em Harvard, estudou Direito e Psicologia. Sua ambição era se dedicar a uma vida acadêmica de prestígio. Mas, ao se formar, as coisas não saíram como planejado. Marston exerceu várias profissões e tocou alguns negócios, fracassando na maioria dos seus projetos. Advogado, pesquisador, professor, romancista, escritor de livros teóricos, publicitário, dentre outras atividades. Também foi processado por credores e investigado pelo FBI por um caso de fraude. Praticamente, por onde ele passava gerava controvérsias por suas ideias nada convencionais sobre a natureza humana (ele não via o homosexualismo e travestismo como desvios) e a relação entre homens e mulheres (para ele, os homens teriam muito mais a ganhar num mundo dominado pelas mulheres). Seus estudos eram considerados pouco científicos. Ele se tornou persona non grata no mundo acadêmico.
Marston advogava a superioridade das mulheres. Ele acreditava que elas tinham uma moral mais elevada por serem mais atentas e honestas. Mas também afirmava que elas possuíam uma docilidade natural, uma tendência para o amor e a submissão, principalmente, no sexo, em práticas como o bondage, em que pessoas são amarradas e imobilizadas.
A visão que Marston tinha das mulheres estava relacionada com sua criação, cercada por várias tias. E também pelo interesse intelectual despertado pelo aguerrido feminismo, nos EUA e Europa, do início do século 20. Mulheres iam às ruas, levantavam cartazes, enfrentavam a polícia, proferiam discursos, acorrentavam-se em lugares públicos, faziam greve de fome contra as opressões do patriarcado. Era um movimento fortemente influenciado pela mitologia grega, por mitos, como a Ilha de Lesbos, e poemas de Safo, nos quais as mulheres viviam com paz e progresso apenas entre elas. O que influenciou, na literatura, a criação de obras feministas importantes, como o romance Angel Island, de Inez Haynes Gillmore. O universitário Marston acompanhava toda essa revolução social de perto. Tão de perto que ele acabou se envolvendo amorosamente com duas mulheres à frente do seu tempo, de uma só vez.

Os três acabaram formando uma família fora dos padrões. Uma casa com um marido, duas esposas e vários filhos. Um arranjo mantido em segredo a todo custo. Elizabeth Holloway, amiga de infância de Marston, trabalhou por muitos anos como editora de periódicos científicos e da Enciclopédia Britânica. Olive Byrne era uma estudante universitária quando conheceu o professor Marston. Ela abandonou os estudos para cuidar da casa. Holloway era conhecida por sua sabedoria e firmeza. Byrne por sua inteligência e vivacidade, além de sempre usar braceletes. Byrne era sobrinha de Margaret Sanger, uma pioneira do controle da natalidade. Para Sanger, a mulher devia ter todos os direitos sobre seu corpo, tornando-se mãe quando desejasse, e não encarando a maternidade como uma prisão inevitável. Sanger era uma personalidade reconhecida internacionalmente, com trânsito entre políticos e a elite. Ela não gostava de Marston, por considerá-lo uma fraude e alguém prejudicial à sua sobrinha. Mesmo assim, Marston tomou Sanger como uma das referências para criar a personalidade da Mulher Maravilha.

A primeira tentativa de Marston de marcar seu nome na História foi com a invenção do detector de mentiras. Na verdade, com o teste de detecção de mentiras, no qual se media a pressão sanguínea para avaliar alterações de humor. O teste nunca foi levado a sério por autoridades do judiciário e pela polícia, parte por preconceito pela novidade, parte pelas dúvidas de sua eficácia. Em 1921, um concorrente, John Augustus Larson, teve mais sorte. Seu polígrafo utilizava um conjunto de fatores (pressão sanguínea, pulsação, respiração e condutividade da pele) para saber se alguém estava mentindo. Em pouco tempo, Marston viu o polígrafo de Larson ser adotado por vários departamentos de polícia pelos EUA, enquanto seu teste era desacreditado. Anos depois, ao criar a Mulher Maravilha, ele usuraria o Laço da Verdade como uma metáfora ao seu teste. Marston nunca desistiu de promover a eficácia do teste, o que gerou grande repercussão na mídia, mas quase nenhum reconhecimento de fato e pouco retorno financeiro.
Em 1940, já na meia-idade, frustrado profissionalmente, havia anos com a família sendo sustentada pelos empregos mais estáveis de Elizabeth Holloway, Marston deu uma entrevista para a revista Family Circle. O título era Don’t Laugh at the Comics (Não riam dos quadrinhos). Marston enaltecia o potencial educador dos quadrinhos, um fenômeno recente na cultura de massa, que conquistou as crianças (e adultos) e se tornou a maior preocupação de professores e pais. Para muitos, os quadrinhos era violentos, estimulavam a delinquência juvenil e estavam repletos de mensagens subliminares pervertidas. Havia quem considerasse a figura do Superman uma ode ao fascismo. O publisher da All-American Publications (que depois se fundiria com outras editoras para formar a DC Comics) Max Gaines ficou tão impressionado com as palavras de Marston que o contratou como consultor.
Não demorou muito, Marston sugeriu a Gaines a criação de uma super-heroína. A partir de conversas em casa, Marston surgiu com a ideia de um contraponto aos heróis masculinos, um exemplo para as mulheres de todo o mundo. Alguém que pudesse vencer a guerra com o amor. Seria uma maneira de calar os críticos que achavam os quadrinhos violentos. Mesmo relutante, Gaines aprovou a ideia. Marston convidou Harry G. Peter, veterano ilustrador de revistas feministas, para dar vida a Suprema, the Wonder Woman (o editor da revista do Superman, Sheldon Mayer, achou melhor chamar a nova super-heroína apenas de Wonder Woman). Depois de alguns testes, Marston ficou satisfeito com o visual da Mulher Maravilha, inspirado no Capitão América, lançado um ano antes, e em protagonistas femininas de outros quadrinhos. A princesa amazona estreou em All Star Comics #8, em 1941, e logo se tornou um enorme sucesso. Finalmente, Marston conseguiu a fama e o dinheiro que tanto tinha perseguido ao longo da vida.